quinta-feira, 3 de maio de 2012

Anti-Tirésias



      Caminhamos sobre um abismo de imagens, entorpecidos pelo volume assombroso de vultos e espectros cotidianos, olhos embaciados pelas vertigens eletrônicas, virtuais; e mentes fustigadas pelas demandas torrenciais das mediações imagéticas entre o mundo objetivo, do espetáculo e a noz da subjetividade. Somos um batalhão de anti-tirésias, videntes sem profecia, olhos abertos para não-ver o mundo, seguindo a corrente sufocante da ditadura do rosto humano - já nem lido, apenas deslizado numa superfície interpretativa, banalíssima. Apartamentos apinhados de tecnologias: câmeras, scanners, binóculos, lupas, etc. E o que vemos? Nem a sujeira no nosso umbigo. “Os animais entraram na imaginação primeiro com mensageiros e promessas”. 

A história de nossa espécie é permeada, costurada com nosso próprio sangue e o sangue das outras espécies, além da seiva e das matérias inorgânicas dispersas e subjugadas sob nosso sonho panóptico e de poder desmedido. Não vemos, de olhos bem abertos, a crueldade diária que se inscreve sobre os ombros da multidão sem-nome (animais e animais humanos). E a parte humana da multidão sem-nome segue comprando comida nos pet shops para gatos e cachorros, percorrendo os corredores dos supermercados para conseguir atum em lata, porcos retalhados em deliciosos pedaços de bacon, camarões congelados, bois e vacas recortados sem a memória do mugido, galinhas empacotadas no plástico onipresente retirado, desdobrado das entranhas da terra sob a forma do líquido negro vital para a sociedade de apetite insaciável. Apesar das tecnologias de “visão além do alcance”, ou justamente por elas, não percebemos a dispersão cruel das presenças animais no percurso de nossas vidas: a “redução do animal, que tem uma história teórica e econômica, é parte do mesmo processo pelo qual os homens têm sido reduzidos a unidades produtivas e consumidoras isoladas”. 

Satisfeitos em nossas baias, percorrendo velozmente as estradas sofisticadas do delírio assassino e asséptico, transferido, lidamos com os animais apenas na medida de nossa fome. Mesmo que os “animais da mente” não possam ser facilmente dispersos, seguimos nossa voragem cheia de dentes, confortavelmente acomodados nos sofás, bebendo leite da cabra nunca vista, comendo carne de lata ou algum sushi. E, depois da refeição, ou ainda durante ela, ficamos nos entretendo com os desenhos do pato Donald, as aventuras da formiga atômica, as desventuras da turma do urso Zé colmeia, etc. 

Eu não vejo a foto do elefante dentro do útero (apesar da insistência da National Geographic). Eu nunca vi um elefante, nem mesmo na prisão/escola/manicômio designada por zoológico. O que eu vejo, envolvido num tom róseo, sanguíneo, é um fantasma, uma lenda, um mito – aparição sobrenatural, de olhos fechados. Observo, mas sedado. “(...) animais são sempre os observados. O fato de que podem nos observar perdeu todo o significado. Eles são os objetos de nosso conhecimento sempre crescente. O que sabemos sobre eles é um índice de nosso poder, e assim é um índice do que nos separa deles. Quanto mais sabemos, mais distantes eles ficam.” 

Vejo um futuro mamute, mera imagem retórica povoando algumas camisas, discursos, nomes de bandas ou qualquer outra bobagem que não possa me ferir. Apontamos nossas câmeras para os animais como se fôssemos documentaristas de zumbis, fascinados pelo dedo que aponta a lua – e sem ver sequer o lado claro da lua. Fotos, filmes, brinquedos de pelúcia, carrossel, mascotes, jogo do bicho: caricaturas sem sangue, sem possibilidade de verdadeiro encontro. “Zoológicos, brinquedos animais realistas e a difusão comercial ampla de imagística animal, tudo isso iniciou quando os animais começaram a ser afastados da vida cotidiana. Poderíamos supor que tais inovações foram compensatórias. Mas na realidade as próprias inovações pertenciam ao mesmo movimento cruel da dispersão dos animais”. 

Como um exímio anti-tirésias, não vi a ausência do elefante, nem recebi uma visão profética de tempos renovados de respiração no mundo natural. O que eu vi, numa fotografia digital, foi um beco, foi um eco, pálido, de uma vida destroçada pelo vírus humano e sua jornada de câmeras, dentes, pólvora e foguetes caralhudos: arsenal de tecnologias de extermínio. Visão opaca debaixo do sol, humanos a sós.

*os trechos entre aspas fazem parte do ensaio "por que olhar os animais?", de John Berger, no livro "Sobre o olhar".